Águas Amaldiçoadas
A sombra de Margoth
O Guia estava livre das garras da sombra no rio, mas a ameaça não havia desaparecido.
Garuk, Réctor e Haftor correram para as margens a fim de acudir o companheiro e buscar rastros do inimigo. O Guia parecia consternado ao constatar que seu oponente sucumbira a uma forma de Morte-Sem-Descanso, apesar de ser um rastreador como ele, e não um mago.
Um sobrevoo rasteiro de Réctor revelou cogumelos escuros — idênticos aos do Vilarejo da Encruzilhada — crescendo nas margens e até sob a superfície do rio. Enquanto isso, Garuk atacava cada vulto que se manifestava sobre o espelho d’água.
A sensação perturbadora nas águas já purificadas do Rio Calbuen persistia. A presença de Margoth ainda era sentida nas escamas, penas e pelos de cada aventureiro sensitivo. De repente, um braço sombrio irrompeu da água, tentando agarrar o Guia. O rastreador contra-atacou com suas garras; sua sombra e a projeção aquática se entrelaçaram até que a inimiga se desfez.
“— Esperarei seu sangue gelar” — disse uma voz gutural, propagada pelas águas, antes que a presença de Margoth se perdesse na correnteza.
Após investigarem os arredores e concluírem que a corrupção parecia vir de uma fonte acima, o grupo decidiu alterar o curso. Em vez de rumarem diretamente para Telas, fariam um desvio até o Lago Eudam. O lago de altitude, próximo às geleiras, era o berçouro onde os rios Inaji e Calbuen se dividiam.
O grupo recordava o aviso de Ergan, em Vau do Calbuen: a mortandade no rio tinha origem em Telas. Contudo, Réctor e o Guia convenceram os demais — especialmente os magos — a aceitarem o desvio, usando como prova os cogumelos escuros recém-nascidos.
“— Seja lá o que for, vem desse lago e também vai para Telas” — argumentou Réctor. “— Se formos até lá, podemos encontrar a origem.”
“— Bom, podemos ir” — concordou Silvan, complementando: “— Talvez isso ajude nossas pesquisas quando chegarmos à cidade, afinal, estamos indo para estudar anomalias no Domo.”
A jornada para o Eudam
O grupo viajou margeando o Rio Calbuen por sete dias até se aproximar da bifurcação para o Lago Eudam. Os aventureiros aproveitaram a jornada para reforçar suas preparações; Haftor, por exemplo, consagrou os equipamentos de seus companheiros.
A noite fria, já nas proximidades do Rio Inaji, oferecia pontos seguros para montarem acampamento e acessarem a Casa dos Sonhos de Réctor sem risco imediato.
O Guia, Frida e alguns guardas permaneceram do lado de fora na vigilância. O estalar da fogueira e o chiado do rio dominavam a audição, mas o rastreador percebeu algo além: uma pulsação, como um coração batendo na direção das águas.
Sacando sua espada, Frida avançou na direção apontada pelo Guia, mas teve sua perna afundada no gelo derretido da margem.
“— Chame o guarda”, ordenou o Guia a um dos soldados, referindo-se a Haldur, antes de seguir a mulher.
Enxergando na penumbra como uma coruja, o rastreador avançou sob a cobertura da noite. Agmarin e Denégria forneciam a única luz visível, e Frida não conseguia perceber o mesmo que ele: peixes nadando agitados e o gelo mais frágil do que deveria estar naquela época do ano.
Frida, com a espada em punho, soltou um grito de guerra — “Iaaah!” — assim que ouviu duas flechas baterem surdamente contra a água. Fora o Guia quem disparara, buscando atingir qualquer anormalidade, mas nada foi encontrado.
Haldur deixou a Casa dos Sonhos buscando rastros de algum espião. Garuk tentou farejar Guzur, o orco que jurara Demétrius de morte. O sekbete sentiu o odor da espécie e amedrontou o Atravessador:
“— Ele está atrás de você.”
Fazendo contas de cabeça e traçando no mapa o último registro de Guzur, o humano ponderava se seu perseguidor poderia estar tão perto.
“— Ele vai matar todos vocês se me encontrar”, disse Demétrius.
“— Ou matar só você”, retrucou o Guia.
Réctor experimentou uma abordagem diferente. Notando que o Rio Inaji possuía uma tênue aura, quase viva, pediu emprestado o Véu da Alvorada de Olgaria e tentou mergulhá-lo nas águas. O napol esperava uma resposta similar à do pingente do Guia no Calbuen, mas o efeito não veio. Em vez disso, a aura mística foi bloqueada pelo véu, contornando seu corpo a alguns metros. Isolado da aura do rio, ele teve um lampejo de memória e foi transportado para um sonho.
Uma onda salgada bateu nas costas do napol, atirando-o contra a areia de uma praia nos Mangues.
“— Sua casa está com as janelas trancadas para o verdadeiro mistério, mas ainda assim, vejo que não está confiante no caminho que está seguindo” — disse, de forma enigmática, Katilmonda, a entidade na qual Réctor buscava inspiração.
O napol questionou a titã-segunda sobre a índole da entidade que despertava, a Aurora Gelada. Porém, mais perguntas surgiram das respostas:
“— A entidade que desperta nunca esteve no mundo como ele é hoje… Eu não sei a resposta sobre sua índole. Acredito que ela esteja precisando de ajuda… ela ainda não mostrou o que deseja. No momento certo, eu lhe direi quem ela é e o que pode fazer.”
Com as respostas parciais de Katilmonda, Réctor decidiu seguir seus instintos. A entidade não se opôs e desfez-se no oceano. Imediatamente, o napol despertou do transe, ainda na água gelada do Inaji. Seus companheiros não entenderam as palavras que ele pronunciou sozinho, mas Réctor explicou seu momento particular com a titã-segunda.
Nada mais foi descoberto na fria correnteza, e o grupo continuou o descanso até o raiar do sol, partindo então para o Lago Eudam.
O Lago Eudam
O grupo finalmente alcançou o lago que dava origem aos rios Inaji e Calbuen após uma escalada que consumiu quase um dia inteiro.
A vista, obstruída a poucas dezenas de metros por uma névoa densa, revelava uma superfície totalmente congelada e escorregadia. O início das Geleiras estava próximo, com a cordilheira logo além.
Avançaram sobre o gelo com cautela; cada passo era um risco de perder o equilíbrio. Réctor, voando baixo, encontrou uma carroça quebrada a pouco mais de cem metros. O napol notou muitas rachaduras no gelo — o próprio veículo parecia ter se desmanchado após parte dele cair na água. Contudo, o que mais chamou a atenção foi o que jazia sob a grossa camada congelada: um gigante colossal, adormecido e paralisado.
O Guia e os outros se aproximaram das fendas encontradas por Réctor. Protegido por seus sortilégios, o Guia mergulhou na água gélida para investigar o gigante e o que mais poderia existir nas profundezas. A sensação ruim arrastada rios abaixo certamente vinha dali; suas auras podiam sentir.
Enquanto isso, Réctor e Garuk investigavam a carroça. Um cristal da Aurora projetava-se para fora da água, ponto onde o veículo supostamente colidira. Também sob a proteção de um rito berserker, Garuk desceu na câmara fria onde repousavam os destroços, mas o local era apenas um cubículo, uma cela de água com paredes de gelo.
Enquanto os dois sekbetes mergulhavam, Réctor ouviu vozes e viu uma luz no horizonte nebuloso. Logo, quatro elfos sombrios surgiram.
O quarteto não parecia composto por guerreiros, mas todos carregavam armas. Não as sacaram imediatamente, embora a postura de superioridade e desprezo típica da raça estivesse evidente.
“— É de vocês esta carroça?”, indagou Réctor à elfa que se adiantou, demonstrando liderança. “— Estávamos indo para Telas, vimos os destroços e achamos que alguém poderia precisar de ajuda.”
“— Então dediquem-se a isso, por favor. Estamos trabalhando e não queremos ser importunados”, respondeu secamente a elfa, que se identificou como Vaela.
A troca de farpas entre Réctor e Vaela prosseguiu. Embora Haftor e Haldur se colocassem de prontidão, a tensão não evoluiu para vias de fato.
Um dos elfos carregava uma varinha com uma pedra da Aurora na ponta. O objeto brilhou em vermelho quando apontado para o cristal que Garuk investigava submerso. Os elfos pareciam pesquisar as Pedras da Aurora, mas com objetivo incerto. Vaela reiterou que não fossem perturbados, pois iriam apenas “sintonizar” e partir.
Garuk resolveu permanecer sob a água e não se revelar. O Guia, por sua vez, investigava o fundo do lago.
Sua atenção focou-se no gigante: a criatura parecia conservada no gelo grosso, contida por vinhas vegetais tão colossais quanto ela própria, amarrando-a ao assoalho do lago.
O Eudam era profundo; cinquenta metros separavam a camada de gelo do fundo escuro. O mergulho do sekbete o levava cada vez mais para a escuridão. Não fossem suas habilidades místicas, a incursão seria impossível.
O Guia já concluía sua busca quando sentiu um movimento rápido na água. Uma criatura maior que um cavalo o atacou com garras afiadas. Apenas um reflexo rápido o salvou.
Um lagarto de gelo nadava velozmente em seu encalço enquanto ele fugia para a superfície. Uma estaca de gelo sólido condensou-se na boca da besta e foi disparada, mas o rastreador desviou com manobras submersas.
O Guia saltou acrobaticamente pela fenda de onde entrara.
“— Serpente! Uma serpente no gelo!”, gritou, anunciando o inimigo, que se espremeu para fora do buraco, revelando-se uma ameaça imediata.
Os elfos sombrios lamentaram a interrupção, e Vaela ordenou:
“— Recuem.”
Os aventureiros prepararam as armas para combater a fera.
“— Tem carne hoje à noite!”, gritou Réctor, voltando-se brevemente para os
elfos: “— Com vocês eu converso depois.”
Terras Selvagens — Dias 17 a 25 do mês do Sangue, ano de 1502.





